domingo, 18 de outubro de 2015

Casa Tomada

Fazia pouco tempo que moravam ali, mas pensaram que o espaço lhes pertencia. Ocuparam-no com seus papeis e suas ideias, dias passados elaborando planos para converter autoproclamados ilibados, ciclistas inveterados. Certo dia, o susto.

"Tomaram os fundos da casa", disse ao ministro um de seus assessores.

"Não há mal", retrucou o Ministro em seu labirinto. "Fechemos as portas dos fundos -- passe as chaves, não esqueça do trinco", instruiu. A casa é grande, pensava, é possível dividi-la enquanto tratamos da conversão.

Assim ficaram por um tempo, o trabalho um pouco dificultado pelo barulho que aumentava do outro lado.

"Tive que fechar a porta do corredor", informou-lhe o mesmo assessor. "Parece que tomaram a biblioteca".

"Tem certeza?", perguntou o Ministro, ar de estupefação. "Prometeram-me que a biblioteca seria poupada. Dei-lhes em troca nossos aposentos, já de nada nos serviam". Há muito o Ministro e seus assessores dormiam na biblioteca. "Passemos à cozinha", disse, ar de resignação. "Mas mantenha o corredor inacessível para que ao menos possamos ter algum sossego aqui. Aqui podemos continuar nossos planos, ainda que disponhamos não mais de livros, mas de panelas e tigelas, facas e colheres de pau. Ainda dá para trabalhar", afirmava, ar cansado.

O cansaço, o Ministro. Envelhecia, o pobre, assombrado pelas armações que certamente lhe cercavam na casa tomada.

"É inútil chefe. Arrombaram a porta, estão no corredor."

O Ministro, derrotado, aquiesceu. "Abra a porta, saiamos".

Deixaram a casa à meia-noite, a chave jogada no ralo, o Ministro a pensar: quem haverá de querer roubar uma casa tomada, sobretudo a essa hora?

***

Versão Levyana de "A Casa Tomada" de Julio Cortázar.





3 comentários:

  1. Muito oportuna a analogia com "Casa Tomada". Eu tenho somados mais de sete centenas de comentários que faço quase diariamente como assinante na seção Comentários do jornal do Valor online desde o início de 2014, criticando dentro dos limites do bom-senso e da civilidade, os erros desse pessoal de Brasília, incluindo PMDB. Quando o plano de ajuste do ministro Levy foi divulgado eu comentei que este plano já nascia destinado ser relegado a segundo plano, por motivos políticos, por ser contrário à política populista de Lula e por motivos econômicos, por deixar de lado o setor industrial e principalmente por contemplar aumento da carga tributária e instituição de novo imposto; Joaquim Levy não negociou bem sua entrada no governo, talvez por ordem da instituição bancária em que trabalhava. Deveria ter dito à Dilma o seguinte: olha, sem redução de despesas correntes, aquelas que são incorridas, não as planejadas para 2016, o plano de ajuste não vai dar certo. Esta aí o resultado.

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  2. Irene, a irmã, não merecia essa comparação.Aliás, esse conto foi o único que teve elogios do Borges...

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